1.De onde viemos e para onde vamos

Alê (Fonte: Acervo Pessoal)
Figura 1 - Alê (Acervo Pessoal)





A resposta mais óbvia para a pergunta da Figura 1 seria: "porque o Prof. da disciplina de Métodos Qualitativos II solicitou que cada um dos alunos fizesse um blog como forma de ser avaliado na disciplina".  Contudo, mais óbvio nem sempre quer dizer mais acertado.

Eu já estava fazendo um movimento de me abrir para as redes sociais há alguns meses, desde que soube da minha aprovação no doutorado. Queria, de alguma forma, registrar esse cotidiano que me parece ser tão distante das pessoas do meu convívio e, portanto, queria aproximá-lo delas. Pensei no Instagram, e até criei um perfil específico para isto lá. Contudo, nada postei.


Entretanto, proposta do blog agradou-me mais: questões de espaço para deleitar-me em reflexões. Então, pretendo ficar aqui até depois do fim da disciplina. Até o fim do douto, ou até sabe quando (que será que vem depois?). 


Para tanto, sinto que preciso situar meu leitor acerca de quem sou eu: de onde venho, basicamente. 


Sou Alê, 36 anos, graduada, mestra e doutoranda em Administração pela UFMG (2014, 2019, 2024-).  Mulher, negra, mãe da Dani e de vários pets, filha da Dona Maria. 

Minha trajetória acadêmica na Administração começou, talvez não por acaso, quando conheci o professor da disciplina de Métodos Qualitativos II mas, que na época da minha graduação, me lecionava Estratégia e Planejamento I. Certa vez, ele (Prof. Luiz) mencionou em sala de aula que faria uma palestra sobre Diversidade nas Organizações e eu fui assisitir.

 

A palestra foi fantástica, mas eu não poderia imaginar que mudaria a minha trajetória para sempre. Durante a sua fala, o professor Luiz mencionou um dos seus artigos sobre o assunto, deixando como leitura sugerida para quem quisesse aprofundar no assunto. Eu, obviamente, o li. E essa leitura, precisamente, foi meu divisor de águas. Apesar de brilhante, não foi o assunto abordado que me conquistou. Foi a forma, o método. Eu havia me frustrado com o fazer ciências na Biologia, mas eu via ali algo muito diferente. O artigo me mostrava uma forma fantástica de fazer mágica com as palavras, brincar com elas, convencer-lhes com doçura a contar-lhes os segredos, enfim, a possibilidade de criar sem dever em nada ao rigor científico, e era precisamente aquilo que eu precisava para reconciliar-me com a carreira científica (sobre essa experiência acadêmica na Biologia, é tema pro próximo post).

 

Procurei no dia seguinte o professor em seu gabinete, pedi a ele que me ensinasse a fazer tudo aquilo que havia feito no artigo. Mal sabia eu que não estava se iniciando apenas uma trajetória acadêmica como, também, uma possibilidade de vida. 

 

Como parte deste mesmo movimento, desliguei-me do meu emprego à época e associei-me a um grupo de pesquisa na Universidade. O que mais me encantava no Luiz, era que ele tinha um pensamento sem limites ou fronteiras e eu, como sua primeira orientanda, embarcava em todas as suas propostas, por mais malucas que fossem.  Em uma reunião, quando estavamos pensando juntos em uma ideia para que eu elaborasse nosso primeiro projeto de pesquisa, ele deu-me algumas opções, dentre elas, grafitos de porta de banheiros. Eu desde nova, gostava de ir contra a maioria. Todo mundo parecia amar os números pares, eu sempre gostei dos ímpares. E assim, com essa cabeça desempareada, saí do gabinete dele maturando a ideia, passei na biblioteca no caminho, peguei um livro sobre o assunto e devorei-o no mesmo dia, enquanto ninava a minha filha. 

 

No dia seguinte, apresentei a ele as minhas impressões sobre o que tinha lido, e o que tinha pensado a respeito: desenhamos o projeto. Até hoje aparecem pessoas me perguntando qual o sentido de um estudo desses dentro da Administração, de vez em quando algumas pessoas escavam-me o currículo e encontram este trabalho e pedem-me entrevistas, e esta questão sempre é inevitável, o que muito me diverte. Envaideço-me por ter saído do óbvio logo na estreia. Ganhamos prêmios devido a ele, o que me leva a pensar que pelo menos alguém conseguiu entender o propósito daquilo tudo. 

 

Foi graças a este projeto também que participei de um Congresso Acadêmico pela primeira vez, apresentando um trabalho. Foi lindo: nunca tinha viajado de avião, daí a companhia aérea resolveu brindar ao momento deixando-me apenas com a roupa do corpo no verão de Salvador, pois extraviou a  minha mala. (Gol, muito obrigada, você brilhou!)

 

O conteúdo escrito em portas de banheiro você pode imaginar: certamente já passou por alguma rodoviária. E foi assim que eu, seríssima e impávida não só projetei em imagens, como também pronunciei a mestres e doutores, em evento internacional,  palavras como cu, cacete, pau, buceta e caralho. E todos se espantaram depois, ao descobrir que eu era apenas uma aluna de graduação pois, pelo domínio teórico e traquejo, imaginavam que eu já estivesse cursando uma pós. 

 

 

Então caros, eu cheguei, literalmente, metendo o pé na porta. 

 

Findo este trabalho, que durou meses, havia chegado um momento decisivo da minha graduação: o famigerado Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Ainda com o professor Luiz a me orientar, decidi fazer algo relativo à disciplina que ele lecionava: Estratégia e Planejamento. No entanto, eu já havia decidido há muito abandonar o mainstream e já tinha uma ideia da Administração que era embrião da que tenho atualmente: pensar numa gestão que vai além do que se pensa para a empresa tradicional, ampliando o conceito para a ideia de compreensão de uma vida organizada, que pode e manifestar de diversas formas. Mas não vou falar aqui de evoluções conceituais, isso aqui não é um manual de Organizações. O que importa que se saiba é que eu ia estudar estratégia e planejamento sim, tudo bonitinho como manda o figurino: mas ia estudá-la em estúdios de tatuagens. 

 

A professora de Monografia tentava fuzilar-me com o olhar em todas as oportunidades em que eu apresentei as parciais da minha monografia para a turma. Dizia sempre o mesmo: que ela havia feito seu doutorado nos Estados Unidos e que por isto, era categórica em dizer-me que meu estudo não fazia o menor sentido, nem teórico e nem prático, que era inconcebível um negócio como um estúdio de tatuagens ter algo tão elaborado como uma estratégia, quanto mais um planejamento. Tive duas sortes para lidar com essa situação: primeiro, que eu sempre fui muito teimosa nas minhas ideias, sendo que o Luiz foi um magnífico orientador, e sempre comprou todas as minhas brigas. Eu só dizia assim: professora, o professor de estratégia diz que tem estratégia lá sim, então, suponho que tenha mesmo. E prossegui. 

 

Não sei se isto ocorre em outras áreas. Tratava-se apenas de entender em quais situações se utiliza certos conceitos. Não se mede rodovias com paquímetros, e a situação aqui era exatamente esta. A professora de Monografia estava presa ao conceito de estratégia utilizado para grandes empresas e este, de fato, só funciona nessa realidade. Mas, existem mil outras formas de se organizar, não é só Nestlés e FIATs que existem no mundo. Existe toda uma gestão que se debruça no que está além disto, com resultados muito promissores. Meu orientador do mestrado, que surgirá nesta história daqui a muitos anos, escreveu sua tese de Professor Titular (o posto mais alto da carreira de um professor numa Universidade) justamente sobre este assunto. Entendi que a graduação tratava-se de aprender tudo mas, principalmente, de saber aplicar as coisas no lugar certo. 

Quanto ao meu TCC: fui aprovada com nota total.  Transformei uma parte dele em um artigo que foi publicado em uma revista científica da área, junto com meu Orientador. Já soube, com orgulho, que ele foi utilizado como referência para outros trabalhos na área, que aprofundaram a temática. Mas, a contribuição mais marcante disso tudo, é que foi na confecção dele que conheci Henrique, um dos tatuadores que gentilmente abriu seu estúdio para a minha pesquisa e que, posteriormente, tornou-se um dos grandes amores da minha vida. 

Mas, haverá tempo para esta história. 

 

Nesse meio tempo, com a faculdade concluída, iniciei carreira como administradora e assumi um cargo de gestão. No entanto, o mestrado, desejo sobrestado, nunca parou de me chamar. Resolvi ouví-lo, entreguei o cargo de gestão após alguns anos, fui. 

 

Para o processo seletivo, escrevi um projeto propondo uma conversa entre o literário/cinematográfico e a gestão. Havia tido contato com as ideias de Joseph Campbell (o livro dele chama-se “O mito do herói”) através das minhas próprias aventuras literárias.

 

Em linhas gerais, Campbell apresenta uma estrutura narrativa muito peculiar, a Jornada do Herói, que segue uma série de passos bem definidos e que é largamente utilizada na literatura e no cinema. É uma maneira de contar uma história que já rendeu somas vultuosas a Hollywood. Incrivelmente, é sempre a mesma coisa, e sempre funciona, pois mexe profundamente com o imaginário humano. 

 

Eu apresentei como questão norteadora , no meu projeto, que as revistas de negócios estavam utilizando esta estrutura narrativa para apresentar a jornada de alguns empreendedores, igualando-os a verdadeiros herói, o que por sua vez, fazia parte de um projeto político maior ligado ao discurso empreendedor no cenário econômico brasileiro.

 

Papo técnico costuma ser uma chatice, mas a ideia era que as revistas de negócio pudessem estar se utilizando de uma estratégia de storytelling para contar a vida de certas pessoas de uma forma, digamos, floreada, para levar o leitor a uma ideia de que empreender seria fácil, tranquilo, sem grandes dificuldades e, mais ainda, engrandecedor. 

 

Adoraram a ideia. Fui aprovada no processo seletivo. 

 

No entanto, este projeto jamais foi levado a cabo. O curso de mestrado foi, para mim, uma loucura, em todos os sentidos. Eu trabalhava, e estudava, e era mãe, e tinha minha casa pra cuidar e todo um mundo de questões existenciais nas costas. 

 

Por motivos de ordem técnica, o meu projeto inicial foi descartado. Mas o meu orientador, Alexandre,  sabia que eu me interessava pelas artes. Naquela época, haviam sido feitos vários grafites na Av. Presidente Antônio Carlos e eu, encantada, tinha ido contempla-los de perto, e fotografado-os. Mostrei o material a ele, que me instigou: por que não?

 

Fui. E aí, o átomo foi se desvendando na minha frente. Sem muitas ideias pré concebidas, fiz uma primeira aproximação com o campo, conversei com grafiteiros e grafiteiros.  De imediato saltou-me aos olhos uma questão primordial: a experiência de grafitar era totalmente distinta para homens e mulheres. Parecia até que nem se tratava da mesma ação. 

 

Então, a coisa foi se desenhando. Propus um estudo para investigar o trabalho das grafiteiras na cidade de BH. Como se organizam, como exercem seu ofício, como angariam clientes, essas coisas. Como plano de fundo, e fio diretor, a filosofia de Guatarri, especialmente seu conceito de subjetividades capitalististicas, que se mostrou muito útil para entender muito do que vi acontecer.

 

Eu olho pra isto, como administradora com dez anos de experiência na área, e só enxergo gestão. Mas, na banca, no dia da defesa, uma das membras perguntou o que aquilo tudo tinha a ver com a Administração. Tudo bem que eu gosto de trabalhar com coisas inusitadas, mas eu também não tenho muita paciência com os espíritos limitados. 

 

Mas a hora da defesa não coincide com o momento de mandar as pessoas as cuias, então, com calma, expliquei que havia visto muitos esboços, muita tinta, muito fazer artístico. Que só tinha conseguido contato de fato com elas quando me propus a ajudá-las, pois eram atarefadíssimas, e não tinham tempo para dar entrevistas a pesquisadores, pois muitas viviam até uma jornada tripla.

Que, assim, carreguei muito balde de tinta, segurei muita escada, desentupi muita válvula de spray e servi, com meus parcos talentos, de assistente artística em muitas obras. 

 

E que, se tudo isto não dizia respeito a uma organização do tempo, do trabalho, da carreira, dos recursos humanos e materiais e que, mais ainda, não contribuía para uma reflexão a respeito dos impactos do capitalismo sobre manifestações artísticas que haviam surgido de maneira rebelde, então, que eu desconhecia como poderia contribuir à Administração. 

 

Assim, tornei-me mestra, sem ressalvas. 

 

Isto já faz alguns anos. Começo a inquietar-me novamente. Agora, o doutorado me chama. O que pretendo nele, é assunto pro próximo post. Continue comigo!

 


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