2. Quando se olha muito tempo para o abismo, ele olha de volta para você

Figura 1. Abismo
Fonte: Canva


A frase do título, constante na obra Além do bem e do mal, do filósofo Friedrich Nietzsche (1992)* foi dita em um contexto de alerta para não nos tornarmos exatamente aquilo que tentamos combater.  Contudo, ao ler os textos base para a aula desta semana, a citação me veio várias vezes à mente, ao constatar que se abordavam temáticas em que se sugeria postura asséptica do pesquisador  - especialmente naquelas que tratavam do positivismo e eu me vejo, como pesquisadora, irremediavelmente em queda no abismo de ter me envolvido em “demasia” - me lambuzado, eu diria - no meu fazer científico. 


Olhei demais para o abismo do “o que não fazer” e acabei fazendo tudo. Essa é, aliás, uma história digna de nota:


Iniciei minha trajetória acadêmico-científica na adolescência, quando cursei o Técnico em Química e tive a experiência de laboratório, onde tudo era, pretensamente, controlado, medido e calculado - meu primeiro contato com um fazer científico positivista - na sequência, tive a experiência da iniciação científica no curso de graduação em Ciências Biológicas (curso que não concluí), que foi muito rica. 


No entanto, algo ali me incomodava. Cabe esclarecer, antes de mais nada, (numa espécie de brincadeira hermenêutica que ensaio, apesar de não ser, eu mesma, essencialista) que este meu relato diz respeito às  experiências de uma aluna dos períodos iniciais de um curso de graduação em biologicas, é verdade, e portanto, sem muito conhecimento teórico. Mas, que por outro lado, já tinha bastante experiência com o fazer científico, obtida no curso técnico, de modo que aqui digo não experiências imaturas, mas reflexões que tive oportunidade de amadurecer depois, ao longo de quase uma década e meia. 


Meu incômodo dizia respeito à baixa oportunidade para a criação no fazer ciência, pelo menos no contexto do laboratório de genética no qual eu trabalhava. Eu queria experimentar coisas novas, misturar reagentes entre si para ver o que acontecia, fazer coisas de acordo com a minha intuição - mas nada daquilo era permitido. Meu proceder ali era, obrigatoriamente, guiado por protocolos criados por cientistas que vieram antes de mim (e como chegaram até aquilo? eu me perguntava, mas ninguém me respondia...), que deviam ser seguidos à risca quanto à especificações de temperatura, velocidades de centrifugação, tempos de reação, medidas de reagente... E muitas das vezes, eu nem entendia os motivos de cada uma daquelas orientações, apenas era forçada a seguir sem discussões.  Então, abandonei o laboratório, abandonei o curso, abandonei tudo. Não sei executar tarefas sem entender seus motivos, como um robô. 

Nesse ponto, cabe o paralelo com o que dizem Latour e Woolgar (1997), que estudaram um fazer científico muito similar ao que eu vivenciei,  a saber, a rotina de cientistas em laboratórios experimentais. 

Eu entendo quando falam do distanciamento que o antropólogo supostamente deve ter de seu sujeito de pesquisa, sei que isto tem base nas ideias positivistas, mas penso de modo diverso. Eu não estive naquele laboratório como pesquisadora, e sim como cientista, mas não penso que esse meu olhar esteja prejudicado por não ter mantido a distância "adequada" ao, por exemplo, fazer aqui o meu relato.

Sei que a posição política do pesquisador é diferente da do sujeito de pesquisa, e não é a isto que me oponho. Estou dizendo apenas que o distanciamento entre pesquisador e realidade não é, na minha visão, obrigatória e, tampouco, arauto do sucesso ou fracasso de uma pesquisa. Mas, prossigamos na minha narrativa.

Quando cheguei no curso de graduação em Administração, pretendia seguir a carreira no dito “mercado”, então as questões acadêmicas não deveriam me incomodar mais. Ledo engano. Certo dia fui a uma palestra e decidi ler um artigo sugerido pelo preletor. Pronto. O fósforo havia sido novamente riscado e lançado em matagal seco.


A leitura daquele artigo - mais precisamente, o método utilizado nele - me puxou novamente para a academia, me mostrando que havia caminho alternativo ao positivismo, que havia me deixado frustrada . A minha trajetória desde então, você pode conferir, caro leitor, no meu post anterior.


Para o futuro, cabe dizer que pretendo, na minha tese, seguir uma espécie de fio condutor que vejo na minha trajetória intelectual na Administração, a saber, as interseções entre a gestão e a arte. Agora, penso em estudar a arte de forma articulada com o Movimento Feminista Negro, mais especificamente, como o fazer artístico das mulheres engajadas neste movimento emerge como ato político. 


E eu, não pretendo seguir o que a literatura deste encontro preconiza nesta tarefa. Não concebo o fazer científico como algo que deva ser feito com certo distanciamento entre a pesquisadora e a realidade que se apresenta a ela. Não acho que se faz este tipo de ciência com a qual se trabalha usando luvas e jalecos para não se “contaminar” com o campo. Eu vou mesmo é me engajar no movimento, lutar nele como mulher negra e artista e ao me afetar no e pelo campo, conceber e parir a minha tese. 


Vejo Rodrigues e Sá (1984) pensando na análise da cultura organizacional de forma quantitativa. Não critico o que elas fizeram em termos de certo ou errado, pois penso que tudo que o foi, o foi amparado em um contexto específico. Mas vejo que a discussão que elas provocaram à época se encaminhou de tal forma que hoje são ricos os estudos similares utilizando métodos qualitativos. Certamente, esta não é apenas uma questão de se abandonar a estatística e sim de mudar a maneira como se enxerga a questão. O positivismo cedeu lugar a outras abordagens. 


Questões como padronização, mensuração, tamanhos de amostras considerados como relevantes, formulação de hipóteses não fazem parte do que o NEOS trabalha atualmente. Atualmente abordamos a realidade de outra forma. Este é um exemplo da perspectiva contraria ao que eu mencionei acima, de olhar para a realidade com luvas e jalecos, sem se permitir afetar-se por ela. 


Um exemplo de como pode-se trabalhar de forma diferente é o que eu proponho fazer em minha tese. Inspirada por Nietzsche, a quem já comecei este texto citando, busco uma perspectiva pós-estruturalista (que teremos a oportunidade de comentar em post futuro) e, dentre as possibilidades que aí se apresentam, pretendo lançar mão da cartografia. 


A cartografia não é um método, é antes, uma analítica que, dentre outras, entende que haja uma profunda conexão entre o pesquisador e o campo. É inclusive, através dos afetos do pesquisador que a cartografia se desenvolve. Sendo assim, não há que se falar em questões como o distanciamento da pesquisadora, um olhar dela “de fora”. Não há isto. É mesmo se lançar, sentir e deixar a pesquisa acontecer, mais do que conduzi-la ou controlá-la. Isto não há. 


E que bom que é assim, pois abre a possibilidade para que, a meu modo, eu também possa ser uma cientista. 



Obs.: postagem referente à aula do dia 21/03/2024, intitulada “Positivismo, Fenomenologia e Hermenêutica”

* cito o filósofo, mas não coaduno com suas ideias racistas e antissemitas.

Referências

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 

LATOUR, B.; WOOLGAR. A vida de laboratório. Rio de Janeiro:Relume Duarte, 1997. p.10-100.

RODRIGUES, S.B. SÁ, R.C.R. Estrutura organizacional brasileira: aplicação do modelo de Aston e implicações metodológicas. Revista de Administração de Empresas. São Paulo, v. 24, n.4, p. 158-174, out./dez. 1984. 



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