O tema do encontro de hoje suscitou em mim a lembrança de um momento da minha vida que, embora não faça parte do percurso oficial do doutorado, certamente faz parte do meu percurso académico e influenciou o que sou agora.
Antes de ser aprovada no processo seletivo do doutorado que me garantiu ingresso ao curso, eu fiz uma primeira tentativa que não logrou êxito mas, nem por isso eu a descarto da minha trajetória, pois aprendi muito com ela.
Nesse primeiro momento eu inscrevi um pré-projeto que utilizava a história de vida como método, no bojo de uma pesquisa que visava compreender a inserção de artistas negras no mercado formal da arte. Transcrevo aqui trecho do que escrevi à época, explicando um pouco da metodologia:
“Proponho usar como estratégia metodológica a história de vida, pois ela é uma das mais adequadas para verificar como as pessoas criam e relatam o mundo em que se inserem, como é o caso desta pesquisa. Ela revela a relação entre o indivíduo e a realidade na qual ele vive (GODOY, 2018). Isto é importante para compreender o mundo das artistas e suas relações com a realidade que as cerca. A história de vida pode contribuir quando o objetivo da pesquisa é ouvir as vozes das minorias, como é o caso desta pesquisa.
Para Silva e Saraiva (2020), as histórias de vida se distanciam da historiografia oficial, pois vão além da mera sucessão de fatos cronológicos e das histórias das elites. De acordo com Barros e Lopes (2014, p.41) histórias de vida são utilizadas de diversas maneiras, em diferentes situações e campos do conhecimento, o que há em comum é o núcleo central da abordagem “a dimensão do contar e da narrativa”.
É importante para este estudo o entendimento do papel primordial do sujeito que se conta, pois a vivência da questão de gênero, raça e classe pode ser apreendida apenas por quem a sente. Esse entendimento oferece elementos que podem escapar a uma análise fria dos dados, que indicam alguns aspectos como as desigualdades mas não dão conta como eles são vivenciados pelos indivíduos. (MOZZATO; COLET; GRZYBOVSKI, 2018; SILVA; SARAIVA, 2020)
Em uma dimensão psicossociológica pode-se pensar na história de vida como um modo de acessar o processo de constituição de uma sociedade, como afirmam Silva e Saraiva (2020), uma vez que se conhece o processo de construção de uma história de vida. Isto ocorre uma vez que ambos, a constituição da sociedade e o processo de construção de uma história de vida, se dão simultaneamente, sendo influenciados e modificados mutuamente.
Segundo GODOY (2018), a história de vida possibilita ter uma noção do indivíduo a partir do contexto da sua vida, seu tempo histórico, é possível captar o que há na intersecção entre a vida pessoal e a vida organizacional, que no caso das artistas deste estudo, equivale a dizer que se refere à convergência entre suas vidas pessoais e as imbricações delas com o mercado da arte e com o fazer artístico.
Essas histórias não são interessantes apenas como narrativas individuais, uma vez que a pergunta é feita para compreender uma realidade. As narrativas interessam sobretudo para compreender uma situação social desconhecida. Mais do que compreender as condições objetivas da vida dos sujeitos, é importante conhecer “o sentido que dão ao seu meio, a sua situação e às suas ações (o sentido que constroem), o que só poderá ser feito no âmbito de uma história de vida”. (BARROS; LOPES, 2014, p.45)
Ao contrário do que possa parecer, esta não é uma metodologia exclusivamente individualista. Embora se foque em experiências de vidas de indivíduos, ela considera que estas ocorrem ao longo de um contexto histórico e social, revelando também aspectos mais amplos das organizações. Uma história de vida carrega sempre em seu bojo referências às mudanças sociais e históricas que lhe servem como pano de fundo, por isto são interessantes para a pesquisa que eu proponho. As histórias de vida nos levam sempre do campo individual para o social, ou seja, elas nos mostram um meio social, uma cultura. Isto acontece porque o indivíduo é membro de grupos (família, organizações, classe social, dentre outros) e interage continuamente dentro destes. (GODOY, 2018)
Conforme orientam Barros e Lopes (2014) e Mozzato, Colet e Grzybovski (2018),não existe uma forma única para obter uma história de vida em uma pesquisa. Questões metodológicas devem se seguir às pesquisas e não as preceder. Por isto, o que proponho aqui é um caminho possível, mas tenho ciência de que ele será reformulado ao longo da pesquisa, devido às características do próprio projeto e das pessoas que contarão suas histórias. É na especificidade de cada história é que se encontra a forma de trabalhar. Assim, tendo consciência de que esta seção passará por ajustes ao longo da pesquisa, proponho aqui não uma metodologia engessada e prescritiva, mas sim uma proposta, um caminho que se ajustará ao longo do percurso.
A entrevista é o principal instrumento para a obtenção de histórias de vida, mas esta é diferente da entrevista estruturada pois, para este método são necessárias entrevistas em profundidade. Assim, as entrevistas são mais extensas e é necessário que o pesquisador adote uma postura mais informal, sem demonstrações de superioridade e sim de igualdade por parte do pesquisador, para que ela seja quase como uma conversa, deixando o entrevistado o mais à vontade possível para fornecer o seu relato (TEIXEIRA; LEMOS; LOPES,2021).
As entrevistas com histórias de vida podem ser complementadas com outras fontes de informação, como por exemplo, diários, cartas, fotografias, pinturas, entre outras. Essas fontes podem ser submetidas à análise visual. No caso de artistas, acredito que imagens podem ser uma fonte muito interessante, uma vez que é uma forma poderosa dessas mulheres se expressarem (GODOY, 2018; TEIXEIRA; LEMOS; LOPES, 2021).
Em concordância com Teixeira, Lemos e Lopes (2021), a seleção das informantes não deve ser aleatória, mas a partir de peculiaridades das trajetórias de vida das pessoas que se relacionam com o objetivo de pesquisa. É necessário avaliar se o informante está relacionado ao tema da pesquisa e se ele tem conhecimentos importantes e vivências sobre o objeto da pesquisa. Uma seleção adequada é importante para a qualidade do material a ser obtido nas entrevistas, o que interfere na entrevista como um todo.
(...)
É impossível a completude do relato, uma vez ser impossível contar tudo o que ocorreu durante uma vida inteira, mas o importante são os sentidos construídos pelos sujeitos (BARROS; LOPES, 2014). Da mesma forma, não existem verdades absolutas nos relatos, e o que deve ser levado em consideração é o sentido produzido pelo indivíduo (TEIXEIRA; LEMOS; LOPES (2021).
De acordo com estudo conduzido por Teixeira, Lemos e Lopes (2021) a análise do discurso é uma abordagem adequada para trabalhar os dados obtidos nos relatos das artistas. A análise do discurso é fonte de elementos metodológicos para dar suporte às análises qualitativas que buscam evidenciar processos de construção de sentidos em processos sociais e organizacionais. Tem como pressuposto que o mundo social é historicamente construído a partir de práticas discursivas que “conferem significado simbólico aos elementos das interações humanas” (SOUZA, CARRIERI, 2014, p. 14)
Dentre as várias possibilidades da análise de discurso, selecionei a análise crítica, que pode ser pensada como fundamentalmente interessada em analisar como as relações estruturais de dominação, poder e controle se manifestam na linguagem. A análise crítica do discurso tem sido utilizada em diversos estudos em que se encontram grupos vulneráveis, como por exemplo aqueles que tratam de questões de gênero e de raça. (WODAK, 2008). Por isso, acredito que esta seja uma abordagem adequada para este estudo.
As histórias de vida contribuem para compreender os sentidos do trabalho no mundo atual, possui grande potencial para a investigação social, por conseguir apresentar a subjetividade dos atores sociais. Permite ainda que a história de um indivíduo reflita um momento histórico, o que revela valores da sociedade que interferem na organização (MOZZATO, COLET, GRZYBOVSKI, 2018). “
Observe-se que até certo ponto o que eu afirmava no projeto estava correto, quanto às definições e forma de obtenção dos dados. No entanto, houve um equívoco no que diz respeito ao que foi proposto como modo de análise dos dados, a saber, via análise crítica do discurso.
Em trecho que não transcrevi, eu inseri a proposta de pesquisa numa vertente interpretacionista e, nesse sentido, esse tipo de análise se revela incoerente em termos epistemológicos.
Hoje, mais amadurecida, inclusive pela leitura do livro organizado por Luiz Alex Silva Saraiva e Georgiana Luna Batinga, Discursos e Organizações, especialmente do capítulo escrito por Saraiva e Silva (2022) entendo que outras abordagem da análise do discurso, como por exemplo, a francesa, seria mais adequadas para o estudo em questão, por manterem maior coerência dentro da pesquisa.
Evidentemente, não foi este o único ponto de crítica ao pré-projeto apresentado na seleção, que também possuía outros pontos problemáticos, o que me levou a ser reprovada no certamente.
Fiquei desolada, obvio, pois desde aquela época era meu profundo desejo cursar o doutorado. No entanto, foi preciso ter maturidade para entender que eu ainda não estava pronta e transformar aquela negativa em combustível para buscar maior aprendizado.
Referências
BARROS, Vanessa Andrade de; LOPES, Fernanda Tarabal. Considerações sobre a pesquisa em história de vida. In: SOUZA, Eloísio Moulin de (org.). Metodologia e Analítica em pesquisa organizacional: uma abordagem teórico-conceitual. Vitória: Edufes, 2014. p. 41-64. Disponível em: http://repositorio.ufes.br/handle/10/939. Acesso em: 01 nov. 2022.
GODOY, Arilda Schmidt. Reflexão a respeito das contribuições e dos limites da história de vida na pesquisa em administração. Administração: Ensino e Pesquisa. Rio de Janeiro, v.19, n. 1, p. 161-175, jan./abr. 2018
MOZZATO, Anelise Rebelato, COLET, Daniela Siqueira GRZYBOVSKI Denise. O potencial da história de vida como estratégia de pesquisa em administração: "Você pode me contar sua história?” Caderno de Administração, Maringá, v. 26, n. 1, jan- jun. 2018.
SARAIVA, Luiz Alex Silva; SILVA, Matheus Arcelo Fernandes. Análise Estruturalista do discurso e histórias de vida: encontros e desencontros. IN: SARAIVA, Luiz Alex Silva; BATINGA, Georgiana Luna (Orgs.). Discursos e Organizações. Porto Alegre: Editora Fi, 2022.
SILVA, Matheus Arcelo Fernandes; SARAIVA, Luiz Alex Silva. Relações raciais e histórias de vida: trabalhadores industriais negros em foco. Organizações & Sociedade [online]. 2020, v. 27, n. 94 [Acessado 29 Outubro 2022] , pp. 532-555. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1984-9270947>.
SOUZA, Mariana Mayumi Pereira de; CARRIERI, Alexandre de Pádua. Análise do discurso em estudos organizacionais. In: SOUZA, Eloísio Moulin de (org.). Metodologia e Analítica em pesquisa organizacional: uma abordagem teórico-conceitual. Vitória: Edufes, 2014. p. 13-40. Disponível em: http://repositorio.ufes.br/handle/10/939. Acesso em: 01 nov. 2022.
TEIXEIRA, Rodilon, LEMOS, Ana Luísa da Costa; LOPES, Fernanda Tarabal. A história de vida na pesquisa em administração. Pensamento Contemporâneo em Administração. Rio de Janeiro, v. 15, n. 4, out./dez. 2021. 101 -118
WODAK, R. The contribution of critical linguistics to the analysis of discriminatory prejudices and stereotypes in the language of politics. In: WODAK, R.; KOLLER, V. (Ed.). Handbook of communications in the public sphere. Berlin: De Gruyter, 2008. p. 291-315.
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