De chão de giz ao oceano

Belo Horizonte, 18 de julho de 2024

Querido Luiz, hoje te peço licenças.

Primeiramente, fones de ouvido: tudo o que digo aqui só faz sentido ao som de Chão de Giz: https://open.spotify.com/intl-pt/track/4VGQN7oQSJeaGkg7WXy2MT?si=14e7bce0f0c14e3d

Tenho esse meu compromisso, meu blog semanal para escrever a ti, contudo me perdoe: minha cabeça durante esta semana pertence a outra pessoa e não a mim. 

E assim, como eu tenho passado, louca, errante pelas calçadas e ruas, evocando memórias de um passado que já foi e que não volta mais, divido hoje minha atenção entre você e ele.

Para que não se sintam constrangidos e alheios um ao outro, vou lhes apresentar: ele também mora num quarto andar. E assim, louca de amor e desespero, vou me debulhando em palavras que urgem por serem escritas, mas que logo mais serão jogadas ao vento: caro Luiz, ele também vai entender tudo aqui, pois é também entendido nesses nossos assuntos. 

E assim, sob o olhar de vocês dois, tão grandiosos perante a mim, imensos, intensos e já muito mais experimentados do que eu, desvelo minhas incipientes experiências e impressões, na esperança de que eu tenha algo a contribuir- nem que seja comigo mesma, nessas reflexões. 

Eu, inicialmente tive a ideia do pesquisador como sendo alguém sisudo, sério, fechado em suas idéias. Cheio de métricas e protocolos, tudo milimetricamente medido, calculado, pontuado, discutido e carimbado. Eu experimentei essa ciência, conforme já pude confidenciar em posts anteriores, e odiei. 

São estereótipos, mas infelizmente são práticas que se travestem de atendimento a um certo rigor, que me faz pensar que o discurso científico como asséptico deveria ser mantido a todo custo, mesmo que implicando, dentre outras, na transformação do coração do cientista em pedra.

Posso estar sendo aqui boba, romântica, ingênua talvez, mas eu gosto de colocar a minha alma nas minhas coisas. 

Não gosto de pensar em uma ciência em que eu não possa ser livremente eu mesma, e me incomodo bastante com a recorrência, não apenas nos textos obrigatórios desta disciplina, de resquícios de um funcionalismo. Assim, nesse sentido, somos orientados a fazer um número “quanto maior, melhor de entrevistas”, e continuamente convidados e intimados a assumir certo rigor que me soa não como conselhos práticos para a pesquisa e sim como uma tentativa a todo custo de enquadrar tudo o que é a metodologia qualitativa num prato para ser avaliado pelos quantitativos.

Não faz sentido isso para mim. 

Gosto, como comentei em sala de aula, de pensar que o meu ser não me desqualifica no campo e que não preciso me despir de minhas lentes e roupagens de existir no mundo para fazer minha pesquisa. Pelo contrário, o meu existir me qualifica para fazer a pesquisa que faço e como faço, de modo que nenhum outro pesquisador pode conduzir uma pesquisa, ainda que seguindo o mesmo projeto, da mesma forma do que eu. 

Receio que talvez pelo curto tempo que tivemos em sala de aula, aliados à minha timidez, não pude desenvolver melhor este raciocínio, de modo que retomo aqui o argumento numa tentativa de continuá-lo, querido Alex e querido leitor-sombra desgraçado-amado, não tanto para vocês, mas sobretudo para mim.

Já anotei aqui na minha agenda de estudos o tópico da reflexividade no nosso campo de pesquisa, conforme você me sugeriu, no intuito de aprofundar a reflexão sobre o tema, mas gostaria de deixar aqui registrado o que penso, quem sabe para talvez um dia poder repensar sobre meus próprios conceitos durante esse percurso do doutoramento. 

Ora, penso: todas as pesquisas que fiz, só o foram como são justamente por que fui eu quem as fez. Outro pesquisador talvez, se tentasse trilhar os caminhos que percorri, certamente chegaria a outros destinos. 

Nós, aqui livres das amarras da reprodutibilidade, penso que devemos reconhecer então a subjetividade do pesquisador como componente da pesquisa e não como algo que corre à sua revelia, urgindo a todos momentos para ser sufocado e contido. 

Eu, Alê, que pari a minha filha e que fui parida pela minha mãe, tenho um modo de enxergar o mundo a partir de tudo o que me constrói - inclusive num recorte temporal pois, a pesquisa que conduzi no passado não seria a mesma hoje, e não apenas por talvez hoje ter tido hoje mais contato com outras teorias, ter me aprofundado, ter mais habilidades como pesquisadora e sim, porque hoje definitivamente não sou mais quem fui na semana passada. E assim, o que amei no começo do mês não é mais quem amo hoje. 

Eu às vezes percebo que afirmações como as que faço agora são muitas vezes confundidas com algo que, na falta de termo melhor para a explicar, chamarei aqui de “pesquisador emocionado”. Este seria aquele que se apaixona de tal maneira pelo campo que perde a capacidade de olhar para sua pesquisa de maneira reflexiva. Noto também que o que falo também suscita debates sobre qual a estirpe que deveria ter um pesquisador para ter a “licença” de estudar tal temática. 

Vamos examinar então essas questões: primeiramente, eu não vejo como problema e sim como, de certa forma, inevitável esse mergulho no campo, principalmente quando aquele contato atravessa o pesquisador de tal forma que o toca em seu íntimo. Por outro lado, não posso deixar de reconhecer que é necessário voltar desse mergulho, retornar à superfície para trabalhar em certos momentos da pesquisa. Justamente por isto é fortemente indicado que o pesquisador se retire e se afaste do campo antes de iniciar as suas análises.

Porém, eu pretendo trabalhar com cartografia, onde a produção de dados e a sua análise não se separa no tempo. E onde ainda os afetos do pesquisador são caríssimos para o desenrolar da pesquisa. Daí, embora não tenha conseguido expressar em sala de aula, vem grande parte da minha inquietação com a problemática da subjetividade do pesquisador, eu estou sempre pensando na minha tese. 

Não haverá afastamento do campo. Estarei envolvida de tal forma com a minha pesquisa que os meus sentimentos farão parte dela. Minha pesquisa será uma esculhambação então?

Evidentemente que não. A saída desse beco me parece ser um verdadeiro exercício de honestidade do pesquisador. Muito tempo se falado, devido a dilemas éticos, da clareza que o pesquisador deve ter com as pessoas que participam da sua pesquisa. Creio que precisamos conversar mais, em termos de área, também sobre a ética de nós pesquisadores entre nós ao termos contato com a pesquisa do outro. 

Vejamos. Teixeira (2015) começa sua tese sobre as empregadas domésticas dizendo que ela mesma havia sido uma daquelas profissionais e que sua mãe também o fora, de modo que o leitor não deveria esperar daquela tese nenhum tipo de neutralidade. Domingues (2021), também em sua tese, nos conta episódios muito particulares de sua vida e percurso de pesquisa que justificam muitas das suas impressões e vivências no campo. 

Será que não seria importante discutirmos sobre a empatia entre nós pesquisadores, para acolher as histórias sobre nós mesmos que precisamos contar uns para os outros em nossas dissertações e teses, para contextualizar as condições de elaboração de tais documentos? É uma reflexão também frutífera, mas que deixo aqui por enquanto em suspenso para outro momento, ja que aqui nesse post já me comprometi com outra agenda. 

Prosseguindo, dizer quem eu sou e de onde vim me parece ser um caminho possível para prosseguir na pesquisa - e aqui ressalto que esta profissão (de fé) vai muito além da escrita de mera seção de texto e sim se constitui em fruto de profunda reflexão do pesquisador, inicialmente e sobretudo, com os seus próprios botões. 

Mas devo confessar que meu coração não se aquieta nisso ainda... Ainda penso que quem ama nem sempre tem seu olhar turvado para perceber as nuances do seu amado. O amor também pode ser uma forma de conhecer. 

Enfim, travessia.

Sobre o segundo ponto que levantei acima, a respeito das maneiras de se evitar que a pesquisa qualitativa se transforme em um trabalho de baixa qualidade, curto em suas ideias e raso em suas análises, eu evoquei o perigo de se confundir as condições de produção da pesquisa, no que se refere ao proprio pesquisador, com narrativas de que só certas pessoas são habilitadas a tratar sobre certos assuntos.

E tenho clareza de que adentro aqui em território muito espinhoso. 

No entanto, vou tentar me desvencilhar, deixando alguns argumentos de fora deste texto para evitar certas searas - mas assumindo que aqui também há fôlego para aprofundamentos em outro momento futuro que possa ser mais propício.

Penso que qualquer pesquisador pode pesquisar sobre qualquer assunto que lhe seja oportuno. O quer não quer dizer que todos irão consegui-lo da mesma maneira. Independente de perícia do pesquisador, ou seja, por motivos que não tem a ver diretamente com sua competência enquanto tal, algumas pesquisas não vão frutificar, justamente, devido ao próprio pesquisador. 

Lembro-me perfeitamente de uma experiência que tive, ainda como graduanda em ciências biológicas que pode ilustrar como percebi isso pela primeira vez. 

Em uma ocasião, que não era de pesquisa e sim de uma aula comum da disciplina de Plantas Medicinais, fizemos uma visita a alguns idosos residentes na cidade de Caetanópolis - MG para conversar sobre o conhecimento deles sobre as ervas e raízes que curam. Um deles decidiu nos mostrar o seu quintal e identificar alguns espécimes No entanto, em certo momento, ao mencionar um cipó que era “bom para homem”, ele hesitava em nos mostrar qual seria esse vegetal e a nos dar maiores informações sobre o preparo do chá. Rapidamente, mas de modo muito discreto, a professora da disciplina compreendeu a situação e retirou a nós, alunas mulheres, de perto do senhor para que ele, mais à vontade com os alunos homens, pudesse falar mais abertamente sobre a planta utilizada para disfunção erétil. 

Na presença das meninas o senhor que visitamos não iria falar sobre o tema que gostaríamos de ouvir, da mesma maneira que alguns pesquisadores também podem ter dificultado seu acesso a algumas pessoas e assuntos que outros estudiosos podem obter com mais facilidade.

Na minha pesquisa, por exemplo, eu tenho certeza que só pude ser aceita no movimento feminista negro por ser uma mulher negra. A todo momento são frequentes os discursos sobre mulheres brancas que se aproximam do movimento e frequentemente isso é associado a uma ideia negativa (o que ocorre por diversos motivos sobre os quais não me delongarei aqui.) Sendo assim, uma mulher branca poderia vir aqui, calçar meus sapatos e escrever a minha tese no meu lugar? Não, ela escreveria a tese dela mesma, pois os meus calçados são sob medida para os meus próprios pés, moldados pelos calos das minhas trajetórias e, portanto, eles não cabem nos pés de mais ninguém. 

A mulher branca veria o movimento feminista negro de uma forma e seria vista por elas de outra, e certamente veria e ouviria coisas muito distintas das que percebo e sou percebida. Seria então uma pesquisa menor do que a minha? Também não, seria apenas uma pesquisa diferente.

Reconhecer essas nuances do trabalho de pesquisa é fundamental para o pesquisador. Não é admissível, a essa altura do percurso, ir a campo com esse tipo de ingenuidade. Quem eu sou estabelece um gabarito para que eu pontue o mundo e eu não aguento mais morrer de faniquito cada vez que ouço recomendações a respeito de vieses. 

O tema da aula de hoje foi sobre as entrevistas e os grupos focais e eu reconheço que toquei de forma muito implícita nesses pontos, privilegiando uma discussão mais metalinguística sobre a pesquisa. 

No entanto, creio que foi necessário fazer dessa forma, uma vez que tudo o que li para me preparar para essa aula suscitou em mim as inquietações que trouxe para o encontro e para aqui. 

Curiosamente, comecei esse texto como um arremedo de carta de amor, pois estava de fato inquieta com questões de ordem pessoal (facilmente confessadas num café entre você e eu, querido Luiz Alex), coisas do coração. No entanto, ao longo da semana as minhas demandas emocionais foram mudando de tal forma que eu até pensei em reescrever trechos desse texto, para ficar mais impessoal. No entanto, a partir das próprias discussões que desenvolvi aqui, achei por bem deixar tudo como estava. Pensei que, de certa maneira, do jeito que está demonstra o próprio ponto que eu estou aqui defendendo.

Meus afetos me possibilitaram ver o mundo de uma forma e, à medida que foram mudando, o meu tom também foi ficando outro. Acho que acontece exatamente isso nos trabalhos de campo como o que pretendo desenvolver. 

Longe de mim incluir elementos da minha vida pessoal, para além do necessário em minha tese, como fiz aqui. Não é disto que estou falando e sim da própria postura do pesquisador ao acessar o campo, que de maneira nenhuma pode ser considerada neutra.

Enfim.

Tem gente que, doente de amor, encontra remédio na vida noturna.

Já eu....


Meu caro Luiz, besta é quem fica apegado a ex, esqueça Chão de giz, vamos nos deleitar com a jóia poética que é Oceano:



Um beijo da sua,

Alê 


Referências Bibliografias 
(quem já viu uma carta com referências, Braseel?)

DOMINGUES, Fabiana Florio. Cartografias da diferença: "causos" de "loucos" no trabalho, o assujeitamento de pessoas em sofrimento mental no mundo do trabalho. 2021. 204 f. Tese (Doutorado) - Curso de Administração, Cepead, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2021

TEIXEIRA, Juliana Cristina. As artes e práticas cotidianas de viver, cuidar, resistir e fazer das empregadas domésticas. 2015. 414 f. Tese (Doutorado) - Curso de Administração, Cepead, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.

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