Belo Horizonte, 01/08/2024
Querido Luiz Alex,
Bora falar de uma dor que só preto entende?
Só podemos ir de Djonga, ne? Vamos ouvindo Olho de tigre.
Mais uma vez, vou quebrar aqui o protocolo. Há algumas semanas atrás, meu coração estava aflito de amor, hoje está aflito também, mas de dor.
Sofrer de amor, ainda seria melhor pois, apesar de também ser um sofrer, envolve certa poesia, um encantamento. O coração pesa, mas a gente ainda fica com aquele arzinho sonhador, guarda uma esperança.
Porém, hoje a minha aflição só dói, só machuca, só parece mesmo que eu tomei um soco na boca do meu estômago.
Tem duas noites que eu nao durmo.
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Fui criada sendo ensinada que eu podia vencer na vida pelos estudos e eu acreditei. Sempre lutei para ser a melhor, ou estar dentre os melhores. Tenho orgulho do que construí. Possuo vasto currículo profissional e acadêmico. Tenho uma reputação que me precede em qualquer lugar que eu vou. Tenho diploma de nível tecnico, graduação, especialização, mestrado e, em breve, doutorado.
Sou convidada a dar palestras sobre a minha área de atuação.
Sou consultada para a elaboração de pareceres técnicos.
Sou referência para outros colegas, que me procuram em busca de conselhos.
Sou concursada, na minha área, em concurso público no qual fui aprovada - com a maior nota do certame em prova de conhecimentos específicos - antes mesmo de concluir a graduação.
Fui aprovada em primeiro lugar no processo seletivo para o curso de doutorado.
Mas, essa semana, experimentei aqui, no meu lugar outrora seguro, o gosto amargo do que é ser uma mulher negra no Brasil.
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Vivenciei uma miríade de sentimentos.
Primeiro, um choque: já fui vitima disto em outros espaços, mas nunca na Universidade. Aqui sempre fui respeitada.
Segundo, um asco: como pode ter gente que acredita ter poder sobre o outro apenas por possuir um determinado fenótipo? Eu infelizmente sei que o nosso mundo se organiza assim, mas não deixa de me parecer um argumento tão nojento quanto fragil.
Terceiro: Apanhei? Apanhei. Mas do sangue que me escorreu eu vou fazer uma poção da qual os racistas vão todos beber. "Ui, vamo assustar eles no processo seletivo?" Fofos, costuma ser bom pensar um pouquinho antes de meter a mão no vespeiro...
Bora!
Hoje a história aqui é sobre a Análise do Discurso.
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A análise do discurso precisa ser entendida, antes de mais nada, a partir da conceituação do que seria o próprio discurso. Dessa forma, entendo aqui o discurso como uma produção social de textos.
O enunciador, ao comunicar seus conteúdos, está embutido em um determinado contexto e, desta maneira, não fala de maneira desgarrada deste. Dessa forma, cada discurso é, de certa forma, fruto de seu tempo, de sua época, de suas condições de enunciação.
Isto não quer dizer que as pessoas podem então se isentar das responsabilidades do que veiculam, alegando simplesmente que são produtos do seu meio, ou que foram influenciadas por outros autores, por exemplo. Evidentemente que o autor do discurso é ator importante nesta dinâmica, afinal, é ele quem está fazendo a enunciação.
Deste modo, o discurso depende muito também de quem enuncia e isto faz parte do contexto de enunciação. Quem fala, como fala, de onde vem, como está vestido, qual canal foi o escolhido pelo enunciador para a veiculação da mensagem, tudo isso também faz parte do discurso.
Imaginemos que, supostamente, um grupo de pessoas queira apresentar um trabalho para outros colegas e, para esta ocasião, resolva ir formalmente trajado, numa ocasião em que o traje usual é o informal. Sem abrirem a boca o grupo está veiculando um discurso
Isso porque o discurso não está restrito ao uso de palavras e por isso aqui é mais adequado talvez pensarmos em termos de mensagens, que podem ser verbais ou não-verbais.
O traje, conforme aludido, é uma mensagem nao-verbal. Aqui seria necessário elencar maiores elementos para se entender o que o uso de tais trajes por parte do grupo poderia significar com mais certeza, mas podemos elencar possibilidades de entendimento aqui como sendo, por exemplo, a necessidade de marcar uma diferença entre eles e restante da turma ou talvez de impor certa posição de autoridade via vestuário. Vai saber o que se passa na cabeca doida das pessoas, né? Nesse nível de elaboração que teço nesse blog, só nos cabe conjecturar.
Por outro lado, a análise do discurso, quando levada a cabo em todo o seu esplendor, especialmente na abordagem francesa, ou estruturalista, envolve conjunto de procedimentos que fornece resultado muito robusto permitindo entender com clareza as diversas dimensões de um discurso e possibilitando pensar em extrapolaçoes.
Ou seja, para quem sabe ler, o discurso pode dizer muito
Assim como outras abordagens qualitativas, a análise do discurso também é território em disputa, com mais de 50 abordagens, cada uma delas bebendo de um determinado referencial e propondo encaminhamentos distintos.
Isso, ao meu ver, aponta para o terreno frutífero que este campo se constitui. Tive a oportunidade recente de participar de avaliação de um trabalho em um evento que propunha o que poderia ser talvez uma nova abordagem dessa temática.
Essa experiência me fez refletir sobre o que afinal, seria o cerne da análise do discurso, o que define o que ela seja, uma vez que me pareceu que o uso de termo ali talvez não fosse o mais adequado. Não me atrevo a fornecer maiores informações sobre o texto avaliado, não só para não comprometer a dinâmica de duplo cego da avaliação, como também o fato do texto permanecer ainda inédito, no prelo.
Mas, fiquei pensando: tudo o que analisa texto é análise do discurso?
No caso em tela, sugeri ao autor que repensasse o uso do termo, ou que o fizesse com cautelas e ressalvas,i uma vez (grosso modo explico aqui, mas a minha avaliação a ele encaminhada foi bem detalhada e fundamentada) que a Análise do Discurso vinha de uma tradição que ele não parecia estar dando continuidade, que o que ele propunha não tinha lastro na análise de discurso propriamente dita, no uso literal da expressão e que, portanto, me parecia ser outra coisa. O que, obviamente, nao vinha no sentido de desmerecer a proposta que ele fazia que, aliiás, no meu ver é brilhante, mas que apenas vinha no sentido da gente ter cuidado no uso de certos termos e de tambem não empreender tentativas de se enquadrar em arcaboucos já consagrados - talvez numa tentativa de busca por segurança - e ter medo de ousar nos métodos e teorias.
Enfim. O recado está dado.
Quem quiser ouvir, que ouça.
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